Em uma ação interinstitucional e interdisciplinar, pesquisadores da UFMS participam do projeto de pesquisa para aprovação do processo de registro do Banho de São João de Corumbá e Ladário como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro.
O projeto histórico e antropológico foi iniciado após Termo de Execução Descentralizado assinado entre o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em Mato Grosso do Sul (Iphan-MS) e o Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da UFMS, coordenado pelo professor Álvaro Banducci, e que deverá ser finalizado até outubro deste ano.
Participam do projeto o Grupo de Trabalho e Pesquisa em Cultura e Turismo (GGTUR), Laboratório de Antropologia Visual Alma do Brasil – Lavalma, graduandos e pós-graduandos dos cursos de Ciências Sociais, História, Geografia e Jornalismo e Mestrado em Antropologia Social da UFMS, professor Marco Aurélio de Oliveira (Mestrado em Estudos Fronteiriços – CPAN), professor Mário Sá (Faculdade de Direito – UFGD), pesquisadores da Fundação de Cultura de Corumbá, além de antropólogos, historiadores e arqueólogos da Superintendência do Iphan no Mato Grosso do Sul e voluntários.
Atualmente, o Iphan possui registrados 41 bens imateriais em todo o Brasil, entre tradições da vida popular, modos de fazer coletivos, celebrações, ritmos e danças. Com a aprovação desta proposta, este será o primeiro patrimônio cultural imaterial exclusivamente de Mato Grosso do Sul, já detentor de outros títulos em parceria com outros estados como na viola de cocho e na capoeira.
O Banho de São João, festa secular realizada em Corumbá e Ladário, reúne milhares de pessoas, entre comunidades locais e turistas, em um evento às margens do Rio Paraguai que remete ao batismo de Jesus feito por João Batista nas águas do Rio Jordão. Já Patrimônio Imaterial Cultural de Mato Grosso do Sul, o evento é repleto de singularidades como o Levantamento do Mastro de São João, Roda de Cururu e Siriri, a Descida dos Andores, em uma celebração sincrética que reúne Catolicismo e religiões Afro-brasileiras, como Umbanda e Candomblé.
A pesquisadora da equipe Luciana Scanoni enfatiza que a festa se estende muito além do ritual às margens do rio. “As pessoas saem de suas casas carregando os andores com o santo, em procissão pelas ruas, chegam até a beira do rio Paraguai onde jogam água nos santo, dão banho, atualizando o batismo de São João em Cristo e de Cristo em São João. Só que essa celebração que vemos na rua, que é uma celebração da cidade, a qual o Poder Público incorporou ao calendário de festas da cidade, começa muito antes nas casas, no ambiente de família. É de lá que surge essa devoção ao santo”, explica.
E é a partir dessa observação etnográfica, com os pressupostos teóricos da Antropologia observados na prática, que os pesquisadores se embasarão para provocar o aceite do Banho de São João como patrimônio cultural do Brasil.
“É um projeto muito importante para o Estado, um programa do Governo Federal, que está alinhavado com as politicas de Cultura da Unesco – tem um caráter democrático muito forte porque o Estado está se dispondo a escutar os cidadãos, que fizeram esse pedido ao IPHAN e que, se aprovado, será registrado no Livro de Celebrações”, coloca Luciana.
Como acontece
Na noite do dia 23, após às 18h, os festeiros descem com os andores à noite em direção ao Rio Paraguai. Antes de sair com o andor enfeitado com a imagem do santo em destaque, com flores vermelhas e brancas, rezam o terço e outras orações, guiadas pelo rezador, pessoa escolhida na comunidade.
As casas dos festeiros são todas decoradas, preparadas para receber as pessoas. Fogueiras e o mastro com a bandeira de São João compõem a celebração.
Após as orações, os festeiros deixam a casa com os andores. Seguem em procissão, cantando ladainhas de São João – hora música sacra, hora profana, até chegarem à ladeira Cunha e Cruz. Se encontram outros andores pelo caminho, se cumprimentam e reverenciam o santo do outro, sendo João, para os católicos, e Xangô para a festividade africana.
Chegando ao Porto, os festeiros entram no rio, jogam água no santo, rezam – em um momento que a água é considerada santa, quando então sobem a ladeira e voltam para casa onde começa a festança, com a participação da comunidade local e o baile madrugada adentro, com comidas, bebidas, músicas e danças típicas da festa.
Secular
A pesquisa está sendo concentrada a partir da década de 40, mas os relatos de moradores locais remetem a períodos anteriores dessa celebração. Santo associado à natureza, no Hemisfério Norte a festa está atrelada ao solstício de verão, época de colheita, de festividade, de fertilidade.
“Quando veio para o Brasil, a festa acontece solstício de inverno, que também é época da colheita do milho, então tem a ver com a produção, com a natureza, purificação e fertilidade do Rio Paraguai, que traz alimentos, traz pessoas para a região”, explica o professor Álvaro Banducci.
Com origem de fora, a festa é multireferenciada, com relatos anteriores da prática em Cuiabá, Cáceres, outros países, como Portugal. A festa extrapola os limites de Corumbá e Ladário, recebendo devotos de outras regiões, como Campo Grande.
“O interessante é essa singularidade que vai adquirindo lá em Corumbá e Ladário, onde a festa do santo é muito sincrética. Então há um encontro religioso, a devoção a esse santo acontece de todos os lados na cidade seja por católico, umbandista, ou quem é do candomblé. Isso torna o Banho de São João local diferente de outras festas, é uma singularidade daquela região”, diz o coordenador da pesquisa.
Essas e outras questões serão identificadas na pesquisa que pretende ainda apresentar o que há de semelhança e diferença entre as celebrações realizadas em Corumbá e Ladário.
“Uma diferença evidente é que em Ladário a festa acontece na praça em frente à Igreja e os andores se reúnem ali. Quando se aproxima meia noite, os andores descem todos em procissão. Já em Corumbá as festas acontecem nas casas e aí saem para o rio. É uma festa com cerca de 200 andores, ou seja, são 200 festas na cidade, uma aglomeração de festeiros e pessoas no Porto”, expõe Álvaro.
Os pesquisadores irão apresentar ao IPHAN Nacional um relatório documentado fundamentando o pedido feito pelo IPHAN local e pela comunidade. Nesse volume estarão presentes informações como o histórico da festa, desde quando há registros e evidencias de sua realização, as transformações e mudanças ao longo dos anos.
“Por ser um patrimônio imaterial, pressupõe-se que é dinâmico, as pessoas vão dando novos significados. Também devemos registrar os históricos das cidades, das comunidades, das economias, como a festa se transforma junto com a transformação da economia das cidades envolvidas, qual é o sentido econômico, simbólico e sagrado do Rio Paraguai nessa festa, as religiosidades envolvidas, diferenças entre os cultos e rituais, a descrição dos próprios festejos, quem são os festeiros, a história do santo nesses festejos, os rituais que acontecem nas festas particulares, o que se diferenciam, o que se aproximam, o Poder público, qual o seu lugar na festa, a participação, a interferência, ou auxilio que presta, a fronteira, a participação de fronteiriços”, enumera o professor.
A lista continua com as músicas, comidas, a participação dos cururueiros, tocadores de violas de cocho que fazem a abertura com o andor oficial da Prefeitura. Eles dançam em torno do mastro e têm um papel importantíssimo dentro da festa, dançando o cururu e siriri. “Essa é outra uma singularidade da festa de São João. O cururu e o siriri são visto como rezas, celebrações, coisas sagradas”, afirma o professor, completando que a ideia do grupo é envolver toda a comunidade local nesse processo.