Fotos: Divulgação Agepen MS

Trabalho prisional no Brasil fere preceitos internacionais

O sistema jurídico brasileiro ainda não se encontra em consonância com os preceitos internacionais sobre o trabalho prisional. Essa é a constatação feita em trabalho de pesquisa no Programa de Pós-graduação Mestrado em Direito, com o tema “Trabalho na execução de pena privativa de liberdade e direitos humanos”, desenvolvido pela pesquisadora Marianny Alves.

Em um estudo que considera o trabalho como “atividade diretamente relacionada ao desenvolvimento humano e social”, e que enquanto direito, “ocupa posição imprescindível na garantia de direitos humanos”, a pesquisadora se propõe a “investigar se a forma pela qual o sistema jurídico brasileiro trata a questão do trabalho no momento de execução de uma pena privativa de liberdade está em consonância com o entendimento internacional sobre o assunto”.

No Brasil, o trabalho do preso é regulado pela Lei de Execuções Penais (LEP), o que exclui essa relação da proteção dada pelas normas dispostas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Segundo a pesquisadora, por mais que o trabalho prisional não se submeta às diretrizes da CLT, “entende-se que esse fato não retira do preso que trabalha a proteção de alguns direitos trabalhistas conferidos por normas de cunho internacional e nacional, afinal, as normas trabalhistas não se resumem apenas à CLT. Assim, importante lembrar que, de acordo com o Código Penal (1940), durante o cumprimento de pena, ao trabalhar, a pessoa presa adquire o direito à remição, à remuneração e à previdência social”.

O Judiciário entende que os presos não podem firmar contratos, por ser a liberdade contratual um requisito de validade dos contratos. “Por outro lado, para fazer o trabalho externo tem de haver o livre consentimento, mas é algo contraditório: o preso tem livre consentimento, mas não pode fazer o contrato. Isso acaba o deixando no limbo. E nenhuma relação de emprego engloba isso. As normas trabalhistas acabam virando as costas para os presos”, afirma.

A pesquisadora concluiu que o princípio de proteção ao trabalhador não deve se restringir à relação de emprego. “A tutela internacional ao trabalhador, percebe-se, está muito além da dependência do mero vínculo empregatício, levando em consideração a proteção aos direitos sociais que pertencem a todos, empregados ou não. As recomendações da OIT são para que não haja vaga para as relações de trabalho não abarcadas pela legislação. É obvio que existe uma relação de trabalho, mas ela não é reconhecida”.

O Direito Internacional do Trabalho, quando considerados os direitos humanos, apresentam posição clara sobre o trabalho prisional, proibindo sua execução como punição.

“Isso chama a atenção dos Estados para que o condenado não se submeta a uma relação de exploração com o setor privado, haja vista que a sua vulnerabilidade enquanto trabalhador se multiplica ante a condição de encarcerado”, diz Marianny.

Apesar de o Estado argumentar que está ressocializando, na verdade, estaria submetendo os presos a um processo de neutralização, segundo a pesquisadora. “O preso é considerado ressocializado quando está submisso”.

Lei

De acordo com o artigo 29 da LEP, o preso trabalhador tem o direito de receber pelo menos três quartos do valor do salário mínimo. Essa remuneração deve atender à indenização dos danos causados pelo crime, assistir à família; cobrir pequenas despesas pessoais; ressarcir o Estado pelas despesas com o próprio preso e se houver alguma diferença, deve ser depositado e entregue ao condenado após liberdade.

Segundo a pesquisadora, “para fins de remição de pena não importa que tipo de trabalho o preso exerce, desde que seja autorizado pela administração penitenciária. Para fins de remuneração, no entanto, há que se observar se o trabalho executado diz respeito à manutenção do sistema carcerário, o que lhe dará o direito apenas de remição; ou se diz respeito a um trabalho destinado a terceiros, gerenciado por fundação, empresa pública ou mediante convênio diretamente com as empresas privadas, do qual provém outros direitos, tais como a remuneração”.

Em 2017, de acordo com dados da Divisão do Trabalho Prisional do Estado, Mato Grosso do Sul registrava 11.260 homens e 490 mulheres encarcerados, dos quais 25,74% trabalhavam, sendo que nesse universo apenas 11,44% exerciam atividade remunerada.

“No relatório do Departamento Penitenciário Nacional, verifica-se que há um baixo índice de pessoas que trabalham em relação ao total de pessoas submetidas ao sistema prisional. Isso porque não há vagas de trabalho suficientes para atender a demanda da superpopulação carcerária. O relatório informa, inclusive, que 55% das vagas de trabalho ocupadas foram obtidas de forma autônoma pelas próprias pessoas privadas de liberdade ou se prestam à manutenção dos estabelecimentos penais, em serviços internos”, explica Marianny.

A pesquisadora afirma ainda que não há vagas para todos aqueles que tem o direito de trabalhar e questiona, então, de que forma seriam escolhidas as pessoas que ocupam as poucas vagas disponíveis e se existiriam critérios justos de seleção dos apenados.

Apesar de ser bastante vantajosa para as empresas a mão de obra carcerária, já que são dispensadas dos encargos trabalhistas, são poucas que se interessam, possivelmente pela preconceito, acredita a pesquisadora.

“O trabalho tem o víeis libertador, de autonomia, de se introduzir no mercado de trabalho, mas também tem um viés de submissão. Vendem uma ideia de que estão preparando as pessoas para o mercado de trabalho para quando saírem estarem ressocializados, mas também utilizam o trabalho como um instrumento de dominação e, às vezes, de exploração”, afirma.

A legislação de execução penal é nacional, mas algumas particularidades podem ser legisladas pelos Estados. No Mato Grosso do Sul, são feitos termos de cooperação com as empresas, que os recebem no chão de fábrica ou levam o material para serviço dentro das penitenciárias, como no caso da produção de cadeiras de fio, artesanato e costura.

Há também o trabalho interno para a manutenção do presídio, para a manutenção da penitenciária, não remunerado, mas que conta como remissão de pena, de um dia a menos no cômputo geral por cada três dias trabalhados.

Direitos

“A fiscalização algumas vezes falha e o preso acaba se submetendo a trabalhar sem receber, porque está remindo a pena e como ele sabe que não há vagas para todos, prefere aceitar essa situação”, afirma a pesquisadora.

Todos os presos que trabalham são cadastrados como auxiliar de serviço geral, por mais que desenvolvam outra atividade.

“Embora a legislação penal fale que tem de aproveitar as aptidões de cada um, os presos são sempre direcionados a trabalhos não bem remunerados. Embora a legislação também fale que tem de ter um caráter educativo, ou seja, a empresa tem de investir na formação desse interno para que depois ele consiga trabalhar, isso também quase não é aplicado”, afirma Marianny.

É muito difícil que o preso em regime fechado consiga trabalhar externamente, seja pelo deslocamento do condenado, seja pela fiscalização na saída do presídio, de forma que os trabalhos externos acabam todos voltados aos que estão nos regimes semi-aberto ou aberto.

Marianny conclui a pesquisa afirmando que “uma das alternativas para viabilizar a proteção dos direitos dos presos no que tange à prestação de serviços sem ferir o dispositivo de proibição da LEP, quanto a não submissão à CLT, seria a consagração do trabalho prisional como uma nova categoria de contrato de trabalho, sendo regulada de acordo com os princípios de direito do trabalho, cuja garantia o preso não deveria perder ante a sentença penal condenatória, afinal, continua titular de seus direitos sociais”.

Paula Pimenta