Reprodução na pecuária: método inovador alia física e medicina veterinária

Grupo de pesquisadores do Instituto de Física e da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia se uniram para melhorar a taxa de sucesso da inseminação artificial

Técnica beneficia sustentabilidade

Sustentabilidade é a palavra de ordem para muitos setores produtivos, inclusive para a pecuária. Em um mercado altamente competitivo e exigente, soluções se fazem necessárias para produzir mais e com mais qualidade, utilizando-se menos recursos naturais. Uma forte aliada na melhora da produção do rebanho tem sido a inseminação artificial, pois contribui para o aumento na taxa de prenhez (número de vacas gestantes), melhoria genética e padronização do rebanho, redução do custo do bezerro produzido, aumento da margem do produtor, entre outros benefícios.

Para tornar essa técnica ainda mais eficiente, um grupo de pesquisadores do Instituto de Física (Infi) e da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (Famez) da UFMS aliaram seus conhecimentos para desenvolver um método que representa um importante avanço científico e tecnológico para esse setor produtivo. Trata-se da utilização da espectroscopia de infravermelho e algoritmos de aprendizado de máquina para identificar precocemente fêmeas bovinas de alta fertilidade.

Professores Gustavo (Famez) e Cícero (Infi) lideram grupo de pesquisa

Liderados pelos professores Cícero Rafael Cena da Silva, do Infi, e Gustavo Guerino Macedo, da Famez, eles utilizaram a espectroscopia de infravermelho por transformada de Fourier (FTIR) para analisar amostras de soro sanguíneo de vacas Nelore antes da inseminação artificial (IA). Por meio da análise dos espectros obtidos e da aplicação de algoritmos de aprendizado de máquina, foi possível discriminar com 100% de precisão antes da inseminação, as fêmeas que ficaram ou não gestantes, 30 dias após o procedimento.

A identificação precoce de fêmeas com alta fertilidade é crucial para aumentar as taxas de sucesso da inseminação artificial, uma vez que a fertilidade da fêmea é influenciada por diversos fatores, incluindo idade, condição corporal e níveis hormonais, por exemplo. Desta forma, a pesquisa aborda um dos grandes desafios da reprodução bovina: o sucesso da inseminação artificial, essencial para a sustentabilidade econômica da indústria pecuária.

“Pode parecer inusitado, mas esse tipo de união entre a Física e a Medicina Veterinária e a Zootecnia, trabalhando lado a lado, está revolucionando a forma como produzimos alimentos. No nosso caso, a vantagem é a precisão da identificação fornecida pela Física, por meio da análise da luz que interage com o soro dos animais, conseguimos saber se uma vaca vai ficar gestante antes mesmo de inseminá-la”, ressalta Gustavo. Ele já atuava com inovação antes de ingressar no corpo docente da Famez e, ao chegar na UFMS em 2019, buscou parcerias junto ao Infi para dar continuidade aos estudos e pesquisas com foco no desenvolvimento de novos produtos e processos.

Identificação precoce otimiza resultados da IA

Gustavo lembra que o setor pecuário em 2023 registrou um PIB de quase R$ 1 trilhão, e só ele maior que o PIB de 138 países, segundo o Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e Organização das Nações Unidas. Isto porque há quase 90 milhões de fêmeas bovinas aptas a reprodução. “As soluções não são difíceis de serem obtidas e é um dinheiro muito grande que está na mesa”, conta. “A identificação precoce do animal produtivo é fundamental para otimizar a produção de alimento, de carne, de leite, além da saúde dos animais. Além disso, também vai melhorar o nosso entendimento dos processos biológicos dos animais, identificar doenças mais cedo, oferecer tratamento mais eficaz e personalizado, reduzindo uso de antibióticos e emissão de carbono, resultando, consequentemente, em um animal mais saudável e mais produtivo. E nem mencionamos o mercado de pets, que é muito grande e crescente também”, diz o professor da Famez.

“Ao utilizar o nosso método, é possível também termos menor desperdício, evitando que as vacas passem por procedimentos desnecessários, reduzir o número de animais no pasto para produzir uma quantidade x de alimentos. A fazenda fica mais sustentável, o preço mais competitivo. Essa união da física com a medicina veterinária/zootecnia está nos levando para uma nova era de produção de alimentos, onde a ciência e a tecnologia andam juntas para dentro da porteira”, fala o professor Gustavo.

Ele sintetiza a importância da invenção como “uma espécie de raios-x molecular do animal que é capaz de investigar o sangue do animal e revelar seus segredos mais íntimos”. “Isso embasa um avanço gigantesco para a pecuária. O método também vai permitir identificar problemas de saúde com maior rapidez, definindo um tratamento mais eficaz e personalizado para cada animal, além de prevenir doenças, já que conseguimos identificar os que são mais suscetíveis. Temos mais bezerros nascendo a cada ano. É uma tecnologia que otimiza recursos, já que possibilita reduzir custos com alimentação, medicamentos, área de pasto, é como se fosse um GPS da reprodução animal, mostrando para o produtor o caminho mais curto para o sucesso”, enfatiza.

Após centrifugar o sangue, as alíquotas são separadas e congeladas

O estudo

O professor Gustavo lembra como tudo começou. “O pessoal, para vender o bezerro ou leite, tem que fazer a vaca parir. Para isso, ela passa por uma estação reprodutiva, que chamamos de monta, e dura uns quatro meses. Porém, depois de quatro meses tentando, parte dessas fêmeas não se torna gestante, e lá se foi muito tempo, sêmen, dinheiro, pasto, etc. Ela não fica gestante e é necessário passar um tempão engordando a fêmea, pois de cara entra numa época seca para a estação de monta seguinte ou para abate. Então a questão é: seria legal se desse para olhar um lote de 200 fêmeas, por exemplo, e conseguisse identificar as boas e as ruins. Ou pelo menos, as que vão dar trabalho para emprenhar. Desta forma, a pessoa trabalharia apenas com as boas e as ruins iriam para abate, otimizando os custos”, conta.

Foi então a partir de uma conversa com o professor Cícero na qual ele contou que conseguia tirar a impressão digital do sangue. “Com certeza, as fêmeas férteis têm uma composição sanguínea, uma impressão digital do sangue diferente das inférteis”, avaliou Gustavo na época. “Começamos a desenhar o projeto de pesquisa em 2020 para um edital da Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul (Fundect-MS). Após isso, decidimos iniciar os estudos independentemente dos recursos financeiros, inserindo em nossa rotina de trabalho. Em 2021, o professor Gustavo e seu orientando de doutorado em Ciências Veterinárias Willian Reis iniciaram os estudos em campo”, recorda Cícero.

“A motivação estava em buscar métodos rápidos que pudessem identificar fêmeas de alta fertilidade para melhorar a taxa de prenhez após inseminação artificial”, salienta Cícero. “Buscamos fazendas, produtores e veterinários dispostos a participar, tratamos os animais para a estação de monta, aplicando um protocolo de medicamentos. Em dias específicos, coletamos o sangue. Por exemplo, no começo do tratamento, no dia da inseminação artificial e no dia do ultrassom para diagnosticar a gestação. Centrifugamos o sangue, separamos em alíquotas, congelamos até o professor Cícero falar que estava pronto para colocar no equipamento e fazer a dosagem. Em seguida, tentando explicar de modo simples, ele montou toda a análise de dados usando modelos matemáticos e machine learning, um algorítimo de inteligência artificial, e conseguiu separar o lote em dois grupos: as que iam emprenhar e as que não iam”, relata Gustavo.

Alíquotas foram analisadas no Sisfóton

O grupo de pesquisadores é formado por dois professores e dois estudantes de doutorado do Infi e dois professores, um doutorando, um mestrando e um estudante de iniciação científica da Famez, além dos colaboradores das fazendas parceiras do Grupo Água Tirada. Já os estudos laboratoriais foram realizados no Laboratório de Reprodução Animal da Famez e no Laboratório do Sisfóton do Infi. “A colaboração com o professor Cícero tem sido fundamental para o avanço dos nossos estudos, devido à sua genialidade e expertise em arrumar soluções inovadoras e eficientes para essa linha de pesquisa em fêmeas bovinas que trabalho. Além disso, tem toda a parte de machos que a professora Eliane está a desenvolver, inclusive já tem amostras coletadas em tourinhos. Imagine as possibilidades…”, salienta o professor Gustavo.

“Trabalhar com foco no desenvolvimento de produtos voltados para o incremento da produção, através da melhoria da eficiência reprodutiva é uma demanda que o nosso laboratório sempre teve, e o objetivo de todo pesquisador é gerar benefícios à população através de suas pesquisas. A ideia de aprimorar a eficiência reprodutiva através de uma técnica que utiliza uma fonte de luz na avaliação de componentes e aliar isso com a inteligência artificial foi muito boa e nos deu o resultado esperado”, avalia o médico veterinário e, hoje, doutor em Ciências Veterinárias Willian Vaniel Alves dos Reis.

Willian apresentou resultados na Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Tecnologia de Embriões em 2023

Willian lembra que conforme os resultados surgiam o grupo ficava mais otimista em relação à pesquisa. “Íamos ficando mais contentes com a pesquisa e isso reforçava ainda mais a ideia de que a técnica poderia funcionar e se transformar em produto. Foram meses de trabalho, desde coleta de dados e materiais a campo até as análises laboratoriais e posteriores análises por algoritmos”, recorda. “Com relação à minha participação, por esse ter sido o meu trabalho de tese de doutorado, participei ativamente de praticamente todas as etapas dele, embora para mim também tivesse sido uma experiência nova com espectroscopia”, fala.

“O trabalho contribuiu significativamente, não somente com bons resultados para defesa de uma tese de doutorado, como em geração de oportunidades para minha área profissional. Tive a oportunidade de apresentar os dados (na época, ainda preliminares) em um dos maiores congressos de reprodução animal do país, tivemos uma publicação em periódico científico de alto impacto, e além disso, a experiência foi importante para que eu desse um outro passo em minha carreira acadêmica: após a defesa, fui convidado para ingressar no pós-doutorado pela Universidade de São Paulo (USP – Pirassununga), onde me encontro atualmente”, diz Willian.

Resultados

Resultados geraram publicações e pedido de patente junto ao Inpi

O grupo de pesquisadores está otimista em relação aos resultados da pesquisa. “Recentemente, tivemos um artigo publicado na revista Scientific Reports do grupo Nature (leia aqui), uma das mais conceituadas e foi feito pedido de depósito de patente utilizando os editais da Agência de Internacionalização e de Inovação como Método de triagem para identificação de fêmeas bovinas com maior potencial para prenhez e reprodução junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi)”, destaca o professor Cícero. O pedido foi depositado em agosto de 2023 e encontra-se sob análise.

“As expectativas são bastante positivas dada a robustez do resultado encontrado e o impacto econômico que isso pode representar para o setor pecuário no futuro. Espera-se que o método possa ser implementado futuramente na rotina de avaliação de animais para reprodução. O próximo passo é buscar parcerias com o setor produtivo para implementação da metodologia e avaliar melhorias na metodologia para explorar amostras menos invasivas e avaliar animais de outras raças e/ou submetidos a protocolos de inseminação diferentes”, finaliza Cícero.

Texto: Vanessa Amin

Fotos: Vanessa Amin/Gustavo Guerino Macedo/Willian Vaniel Alves dos Reis