“A música é uma parte que me constitui”, assim Flávio Zancheta Faccioni descreve o interesse em estudar canções e os sentidos que delas emergem, bem como demarcar a cultura e história regional que são repassados por meio da voz e dos instrumentos como a viola e o violão. A música foi estudada em sua dissertação de mestrado e é objeto também da sua tese, que deve ser desenvolvida no doutorado recém iniciado.
O pesquisador, que é graduado em Letras com habilitação em Português/Espanhol pela UFMS, campus de Três Lagoas (CPTL), relembra que foi na volta de um congresso que surgiu a ideia. “Estava tocando uma música do Almir Sater e eu ainda não tinha pensado o que eu poderia pesquisar, então minha orientadora, professora Claudete Cameschi de Souza falou ‘você pode fazer um trabalho sobre as canções do Almir’. Então inicialmente esse era o intuito, mas depois pesquisando outras produções chegamos aos outros cantores. Entrevistei o Almir e também o Geraldo Espíndola e o Paulo Simões, e assim busquei as representações dos povos indígenas em três canções compostas por eles: Kikiô, Serra de Maracajú e Sonhos Guaranis”, conta.
A dissertação “(Em) Serra de Maracajú, Sonhos Guaranis” traz observações sobre a memória e a história dos indígenas contidas nas três músicas e o título subjetivo do trabalho, unindo os nomes de duas canções, traz também significados. “O título quem sugeriu foi minha orientadora, criatividade dela. Ao mesmo tempo em que a preposição ‘em’ ao início está separada de ‘Serra’ pelos parênteses, na leitura a oralidade leva à união dessas duas palavras, e apesar de não haver o ‘c’ do verbo encerrar, a pronúncia nos leva a ‘encerrar’. Então encerram-se na Serra de Maracajú os sonhos de todos os povos originários, porque ali se abrigavam, porque ali sempre foi um espaço de acolhimento e proteção durante a guerra do Paraguai”, explica.
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Doutorado – Flávio disse que durante as entrevistas com os compositores para o trabalho de mestrado, identificou-se bastante com Paulo Simões, sua vivência e inspirações e por isso resolveu dedicar-se às suas composições no doutorado. O estudante está no primeiro ano do Programa de Pós-Graduação em Letras do CPTL e é bolsista da Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul (Fundect). Seu trabalho “Mato Grosso do Sul: entre cordas e versos” está na área de concentração em “Estudos Linguísticos” e na linha de pesquisa “Discurso, subjetividade e ensino de línguas”.
“As produções do Paulo Simões em parceria com Almir Sater, Geraldo Roca, que infelizmente já é falecido, entre outros parceiros, falam muito de Mato Grosso do Sul, então agora o intuito é observar essas representações, mapear esse patrimônio imaterial cultural para que outras gerações conheçam a história, a memória, a cultura do estado passada por meio dessas canções”, informou. Flávio revela que se interessa muito pela criação e composição das músicas, pela subjetividade, e que a abertura que conseguiu junto aos entrevistados permite que recorra a eles para a compreensão desse processo. “Quero entender como a canção foi produzida e quais são os efeitos de sentido hoje e quais eram ontem, porque as músicas vão adquirindo novos sentidos. Todos os dias eu ouço Paulo Simões e vou identificando diferenças, as diversas temáticas que ele canta”, afirma.
Entre as atividades previstas no projeto de doutorado estão novas entrevistas com Paulo e com outros compositores com os quais trabalha, pesquisa de campo e observação do material. O intuito do estudante é analisar cerca de 10 canções, entre elas “Sonhos Guaranis”, “Comitiva Esperança”, “Mês de Maio” e “Trem do Pantanal”. “Sobre a última, Paulo contou que foi criada quando ele e Geraldo Roca foram para Machu Pichu de trem e logo após passarem por Miranda surgiram os primeiros acordes. Inicialmente a música se chamava ‘Sobre todos os trilhos da Terra’, mas como as pessoas sempre pediam que tocassem ‘Trem do Pantanal’, assim ficou. E essa canção pode ser considerada um hino não oficial de Mato Grosso do Sul de tanto que fez sucesso e remete à cultura regional”, pontua Flávio.
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Sobre os trilhos – Por falar em trem, este elemento bastante presente nas canções regionais é apontado pelo pesquisador como uma grande contribuição para a formação social do estado. “O trem é sinônimo de progresso, ele traz isso e também influi na formação cultural porque atua também na formação social. Paulo Simões que não é sul-mato-grossense chega ao estado de trem”, conta.
Pensando nessas questões e na canção, Flávio resolveu participar do edital de “Seleção de Projetos Culturais da Valorização da Cultura três-lagoense”, desenvolvido pela prefeitura. A proposta “Trilhos Culturais de Mato Grosso do Sul” está interligada com seu projeto de doutorado e conquistou o 3º lugar. De acordo com o doutorando, o objetivo principal é refletir e debater a importância da memória histórica do trem para a cidade e para o estado, e isso deve ser feito por meio de um seminário, exposição fotográfica e a possível gravação de um videoclipe no local.
O estudante ainda não sabe se o evento poderá ser feito presencialmente ou se será todo virtual, mas a previsão de realização totalmente gratuita e aberta ao público é para março de 2021. “O intuito é trazer pessoas que trabalharam na área ferroviária, pesquisadores e outros representantes que possam discutir os impactos do trem na economia, na cultura e na sociedade local. Queremos promover também uma reflexão sobre possibilidades de utilização do trem e para onde a atividade pode convergir e, ainda, trazer o Paulo Simões para cantar e gravar um videoclipe de ‘Trem do Pantanal’ na ‘Cidade das Águas’”, revela.
Flávio conta que a prefeitura de Três Lagoas já tem realizado revitalizações nos espaços ferroviários da cidade, “inclusive a antiga estação hoje faz parte da Secretaria Municipal de Educação e Cultura e é onde fui assinar o contrato para a execução desse projeto, o que para mim foi bastante simbólico”, disse. O estudante finaliza informando que a ideia é reunir todo o material produzido a partir das discussões no seminário e as imagens da exposição em um canal na internet e no formato de livro virtual. “Nós nos diferenciamos por meio da cultura, de aspectos culturais que as canções também trazem para os outros, então quero contribuir, com o projeto e também com a tese, para a valorização desse patrimônio imaterial”.
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Texto: Ariane Comineti – Imagens: Arquivo pessoal do pesquisador