Mário de Andrade: “gramatiquinha” genuinamente brasileira

Enquanto há quem sustente que a Língua Portuguesa é única, seja no Brasil ou em Portugal, excetuando-se algumas inserções distintas no vocabulário, um dos grandes autores da Literatura Nacional, Mário de Andrade, se opôs fortemente a essa premissa e durante anos trabalhou em uma proposta para uma “gramatiquinha” genuinamente brasileira.

Interrompido com sua morte, os manuscritos que dariam vida à obra foram recolhidos e ressurgiram na publicação Mário de Andrade A Gramatiquinha da Fala Brasileira, pela professora Edith Pimentel (USP) na década de 90.

Inspirado nessa publicação, o professor Marcelo Rocha Barros Gonçalves, do Campus de Coxim, realiza em pós-doutorado a pesquisa “A Gramatiquinha de Mário de Andrade: História das ideias Linguísticas e Linguística Popular”, e levanta a hipótese de que Mário de Andrade, além de atuar como literato e musicólogo, poderia ser interpretado como um linguista popular, e poderia ter, portanto, contribuído para a constituição da língua nacional em distanciamento com a língua portuguesa de Portugal.

“A proposta de Mario de Andrade era produzir uma gramática que contemplasse de fato as informações especificamente do Português no Brasil. Neste sentido, o livro tem então uma dupla função: a primeira, colocada no âmbito das discussões do final do século XIX e início do século XX, que era referendar uma Língua Portuguesa Nacional, portanto afastada da de Portugal; e a segunda, ainda bastante atual, era a de preconizar a cultura brasileira”, afirma o professor.

Marcelo explica que a Gramatização, segundo Sylvain Auroux, trata-se de um fenômeno no qual uma língua é “interpretada e analisada” conforme uma tradição latina, sobretudo com a produção de tecnologias capazes de “enquadrar” estas línguas, como é o caso dos dicionários e das gramáticas.

“No Brasil este fenômeno está intrinsicamente relacionado ao nosso próprio processo de Independência e é potencializado com a Proclamação da República. É preciso então contextualizar a questão de autores como Mario de Andrade, que, num ambiente Modernista, pretendia produzir uma literatura de corpo e alma brasileira. Para isso era preciso vencer as velhas formas europeizadas de se fazer literatura e imprimir uma verve totalmente nacional e a língua era o instrumento para isso. Assim, no projeto de Mario de Andrade, era preciso partir de uma língua que fosse o reflexo de uma cultura brasileira. Então, dito isto, sim, o trabalho de Mario de Andrade influenciou a Gramatização Brasileira”, diz.

A Linguística Popular é destacada pelo pesquisador em suas análises. “Tradicionalmente, a Linguística exclui os saberes produzidos por falantes comuns, de carne e osso, de seu escopo de análise. O que a Linguística Popular tem reivindicado é que saberes produzidos por falantes reais sobre a língua são também importantes meios de produção de conhecimento linguístico, de conhecimento metalinguístico”, completa.

Outra questão refere-se ao tratamento da questão da espacialidade, o que o professor Marcelo define como o que se entende pela distribuição da Língua Portuguesa no território nacional.

“Mário de Andrade, ainda lá no início do século passado apontou para uma série de características nos falares regionais que tem sido alvo de estudos de linguistas brasileiros e estrangeiros até hoje. O que tenho feito em minha pesquisa de pós-doutoramento é de fato relacionar as hipóteses levantadas por Mário de Andrade com as teses desenvolvidas na Linguística Nacional sobre a constituição da Língua Portuguesa em solo nacional. É, portanto uma forma de analisar o que se produziu sobre a História da Língua Portuguesa”, expõe.

Para ampliar o diálogo entre as áreas de História das Ideias Linguísticas e de Linguística Popular, o professor Marcelo visualiza uma futura rede de produção de conhecimento na área, com engajamento de pesquisadores de todas as partes e todos os níveis, do ensino fundamental/médio ao ensino superior, da graduação à pós-graduação, do Brasil e do mundo.

Membro da Comissão de Historiografia Linguística da Associação Brasileira de Linguística (Abralin) e da Associação Nacional de Pós-Graduação em Letras e Linguística (Anpoll), o professor Marcelo tem trabalhado na divulgação deste novo campo de pesquisa na Linguística Brasileira, sobretudo a sua divulgação científica e não-científica.

“Criamos uma rede de trabalho bastante sólida e temos traduzido para o português uma série de textos em inglês e francês (inacessíveis ainda para muitos), além da publicação de textos inéditos e de autoria dos próprios pesquisadores brasileiros. Vou chamar a atenção para o livro que está para sair, em formato digital, de livre acesso, pela nossa própria editora, a Editora da UFMS, organizado por mim, pelo meu orientador Roberto L. Baronas da UFSCar e pela pesquisadora Tamires Conti, também da UFSCar e sai publicado com o título de “Linguística Popular/Folk Linguistics: Saberes Linguísticos de Meia Tigela?”.

Referências:

PIMENTEL, E. A Gramatiquinha de Mário de Andrade: Texto e Contexto. Secretaria de Estado de Cultura, Duas Cidades, 1990.

ALMEIDA, A. Edição Genática d’ A gramatiquinha da fala brasileira de Mário de Andrade. Dissertação de Mestrado, USP. 2013.

Texto: Paula Pimenta