Descoberta revoluciona teorias sobre a extinção desses animais no continente, abrindo oportunidades de modernização do conhecimento e de novas pesquisas
Um grupo de pesquisadores brasileiros descobriu que, ao contrário do que foi estabelecido há décadas, mamíferos da megafauna viveram no país muito além da “Era do Gelo”. O achado em fósseis das coleções paleontológicas do Laboratório de Zoologia do Instituto de Biociências da UFMS e do Museu de Pré-História de Itapipoca, do Ceará, revoluciona teorias sobre a extinção abrupta desses animais, provocando a modernização dos estudos e abrindo oportunidades para novas pesquisas.
O artigo intitulado 3.500 anos AP: A última sobrevivência da megafauna de mamíferos nas Américas foi publicado na Revista Sul-Americana de Ciências da Terra (Journal of South American Earth Sciences). Os autores são os pesquisadores Fábio Henrique Cortes Faria e Ismar de Souza Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Hermínio Ismael de Araújo-Júnior, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj); Celso Lira Ximenes, do Museu de Pré-História de Itapipoca (Muphi); Edna Maria Facincani, da Faculdade de Engenharias, Arquitetura e Urbanismo e Geografia da UFMS. A datação do material foi realizada no Laboratório de Radiocarbono da Universidade Federal Fluminense (UFF) no Câmpus Gragoatá, em Niterói, e o estudo teve o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Megafauna e extinção
Fábio Faria conta que realiza datações cronológicas de fósseis sob orientação do professor Ismar Carvalho desde 2011, tendo trabalhado com o tema em sua graduação, mestrado, doutorado e agora no pós-doutorado junto à Faperj. O objetivo é datar o maior número de exemplares possível frente à grande quantidade de registros da megafauna na América do Sul. No doutorado iniciado em 2020, durante a pandemia, os pesquisadores buscaram parcerias já estabelecidas para obterem mais facilmente o acesso às coleções paleontológicas e assim foram então fortalecidas as relações com a UFMS e o Muphi, que resultaram neste artigo.
Os pesquisadores iniciam o relato sobre o estudo explicando o que é “megafauna”. O termo é associado a animais pré-históricos que viveram durante o Pleistoceno, época geológica do período Quaternário estabelecida entre 2 milhões e 12 mil anos atrás. Marcada por glaciações, esta época ficou conhecida como “Era do Gelo” e é anterior à época atual, chamada Holoceno. “Quando falamos de megafauna quaternária falamos dos grandes mamíferos que viveram naquele período. Os animais caracteristicamente mais emblemáticos são os com mais de uma tonelada de peso, que são o toxodon, o mastodonte e a preguiça gigante, mas existem também os de porte menor, que podem ter acima de 40 quilos, que são a Palaeolama major e o tigre dentes-de-sabre, entre outros”, aponta Fábio.
“Costumo dizer que ‘megafauna’ está para os mamíferos gigantes, assim como ‘dinossauro’ está para os répteis gigantes”, complementa Celso Ximenes, que explica também que ainda existe megafauna vivente no mundo, especialmente no continente africano. O pesquisador ressalta que em outros lugares, como Europa, Ásia e Américas, ela foi extinta em uma época até então aceita como sendo no final do Pleistoceno e início do Holoceno, há cerca de 12 mil anos.
“E por que a América do Sul ganha tanto destaque quando falamos em ‘megafauna’? Por que foi o continente mais afetado. 80% das espécies de megafauna foram extintas, por isso esse estudo é tão emblemático”, ressalta Fábio.
Metodologia e resultados
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Ao contrário do que era aceito como verdade, a extinção da megafauna há cerca de 12 mil anos, as datações feitas em oito fragmentos de dentes de animais da megafauna nesta pesquisa, sendo um da UFMS e sete do Muphi, confirmaram a existência deles há cerca de 3.500 anos. Da UFMS foi selecionada uma amostra de uma preguiça gigante (Eremotherium laurillardi), encontrada no rio Miranda, e do Muphi foram selecionadas amostras vindas do sítio paleontológico do Jirau, de uma preguiça gigante, de um tigre dentes-de-sabre (Smilodon populator), um Toxodon platensis, um Xenorhinotherium bahiense, um mastodonte (Notiomastodon platensis) e um Palaeolama major.
Conforme o pesquisador e representante do Muphi, Celso Ximenes, os fósseis de Itapipoca já são conhecidos pela ciência brasileira há mais de um século, com registros desde o século 19 e a presença do município no primeiro mapa publicado sobre a megafauna do Brasil, em 1939. “Grandes paleontólogos brasileiros realizaram expedições até a região e deram início às coleções do Muphi, à formação de pesquisadores, mestres e doutores. E nosso trabalho é justamente esse, guardar, organizar, proteger, pesquisar e divulgar a coleção de fósseis, subsidiando os pesquisadores. Inclusive o próprio Hermínio Araújo, parceiro nesta pesquisa, realizou o trabalho de doutorado junto ao acervo do museu. Então quando o Fábio nos procurou em seu pós-doutorado para obter fósseis da megafauna, separamos essas amostras que foram coletadas em uma escavação científica em 2006, a qual coordenei. Mandamos 14 amostras representativas de sete espécies e duas delas foram as que resultaram nas idades mais recentes, cerca de 3.500 anos, que dão título ao artigo”, explica.
O pesquisador Fábio Faria fez uma triagem das amostras recebidas do Muphi e da UFMS e enviou para datação no Laboratório de Radiocarbono da UFF, apontado como único a realizar esse tipo de análise na América do Sul. O método utilizado foi a datação do Carbono 14 por Espectrometria de Massa com Aceleradores (14C-AMS). “Esse método permite que você date pequenos fragmentos, que tenham entre três e quatro gramas. O laboratório utilizado é o único da América Latina certificado por instituições internacionais para essa análise e decidir por utilizá-lo também foi para valorizar e fortalecer as instituições nacionais de pesquisa e ciência”, explica.
Os resultados obtidos foram os seguintes: de Itapipoca, Ceará – Preguiça gigante (6.161 ± 364 anos e 7.415 ± 167 anos), Tigre dentes-de-sabre (7.803 ± 179 anos), Toxodon platensis (7.804 ± 226 anos), Xenorhinotherium bahiense (3.587 ± 112), Mastodonte (7.940 ± 502 anos) e Palaeolama major (3.492 ± 165 anos); do rio Miranda, Mato Grosso do Sul – Preguiça gigante (5.942 ± 294 anos).
De acordo com a professora Edna Facincani, além da descoberta dos mamíferos mais recentes entre os fósseis do Ceará, o material da UFMS resultou também na idade mais recente de preguiça gigante da América do Sul, o que propicia inserir o estado em uma das três regiões zoogeográficas que se destacam quanto à quantidade e diversidade de espécies desta fauna mamífera, a Região Intertropical Brasileira. As outras duas já conhecidas e estudadas há tempos são as regiões do Chaco no Paraguai e dos Pampas ao sul do país e no Uruguai.
“A Região Intertropical Brasileira era composta principalmente pelos estados do Nordeste, com exceção do Maranhão, alguns do Centro-Oeste e do Sudeste. Com o avanço das pesquisas podemos enquadrar esses nossos achados e outros que vêm sendo encontrados por pesquisadores no MS, nos rios Apa e Formoso, expandindo essa área não só para o estado, mas para o Paraguai também. Então sempre comento com a professora Edna que o estado pode vir a ser considerado até um importante corredor biogeográfico, tendo feito a ligação entre estas três importantes regiões”, comenta Fábio.
Dogma, perspectivas e parcerias
Os resultados das datações obtidas pelos pesquisadores brasileiros trazem diversas contribuições à ciência, entre elas a mudança no marco limite da vida da megafauna e a contraposição a algumas das teorias sobre a extinção abrupta da megafauna na América do Sul. “Na literatura científica nacional e internacional é dito que a partir de 11 mil anos nós teríamos tido grandes eventos de extinção que levariam a uma grande catástrofe ambiental, que faz com que todos esses indivíduos deixem de existir e passemos a ter uma outra biota, uma outra fauna. Então isso era e ainda é, porque o estudo vai começar a ser conhecido agora, um dogma, no sentido de que as pessoas sequer se preocupavam em fazer a datação dos seus fósseis, porque acreditavam que se achassem um osso da megafauna, ele automaticamente seria de uma idade mais antiga do que 11 mil anos. Então virou uma situação do problema do limite de vida da megafauna. O que o trabalho faz é subverter esse dogma”, informa o pesquisador Ismar Carvalho.
Entre as teorias que não mais se sustentam frente aos achados do estudo estão a Overkill e Blitzkrieg, que apontam como causa do sumiço dessas espécies da megafauna, a caça exacerbada. Fábio Faria ressalta que, embora haja poucos registros paleontológicos e arqueológicos de interação entre a megafauna e os seres humanos na América do Sul, os animais de pequeno porte teriam sobrevivido e, a partir de agora, os estudos se voltam cada vez mais às teorias relacionadas às mudanças climáticas e ambientais. “Cada vez mais damos maior peso a essas mudanças que ocorreram no final da ‘Era do Gelo’ até três mil anos. Foram mudanças significativas. O Pantanal, por exemplo, até sete mil anos era um vazio, não tinha essa exuberância, essa quantidade de água. Então essa mudança climática e ambiental causaria o desaparecimento desses ambientes que eram favoráveis à sobrevivência da megafauna na América do Sul”, afirma.
A perspectiva aberta permite entender as relações de extinção de uma outra maneira e afirmar então que não foi um evento catastrófico ao final do Pleistoceno, mas um evento de extinção contínua ao longo do tempo. “O que a pesquisa introduz é algo muito importante nesse sentido de entender processos temporais. Todos nós somos construção do tempo, tudo que existe, as plantas, os animais… Nós só estamos aqui porque existiram outros que vieram antes de nós. A biota, aquilo que nós encontramos, os tipos de plantas, de animais que hoje estão aqui vivendo conosco, eles não são um ato instantâneo da criação. Não é uma fauna ou uma megafauna que morre abruptamente e surge uma nova ocupação do território. Na realidade, é um processo contínuo de transformação”, destaca Ismar.
Para Fábio, a importância em sabermos sobre a extinção da megafauna é a possibilidade de nos voltarmos à conservação das espécies atuais. “Se num tempo onde você tinha pouca expressão humana, não tínhamos modificado de forma considerável a superfície da Terra, se as mudanças ambientais causaram a extinção dessa fauna magnífica, imagina as mudanças ambientais que acontecem hoje somadas às nossas atividades antrópicas. Então, serve como parâmetro para a gente pensar na conservação da biota atual também”, comenta.
Os pesquisadores ressaltam a importância das parcerias institucionais para os resultados obtidos. “Como cientistas estamos contribuindo para a geração de uma identidade da paleontologia brasileira, daquilo que é produzido como ciência no nosso país, por pesquisadores brasileiros, com materiais brasileiros, em instituições brasileiras que são certificadas internacionalmente, com amplo aceite. Fiquei super orgulhoso de fazer parte do grupo e esse estudo tem um processo de formulação intelectual a partir dos dados e de reflexão que revolucionam o conhecimento científico no âmbito das geociências. E o que me parece importante foi essa sinergia que existiu entre diferentes instituições do país. Hoje no âmbito da ciência precisamos de ações que tenham caráter plural, pluralidade tanto na formação dos pesquisadores, quanto de uma ação multi-institucional, o que pode dar bons resultados como foi o caso deste trabalho”, observa Ismar Carvalho.
“Quando se fala em ciência, no imaginário popular, logo se pensa que o Brasil não produz ciência de ponta. Mas não é isso. A gente consegue observar tanto nas geociências, nas ciências aplicadas e em muitas outras, o Brasil produz ciência de ponta sim. Então essa pesquisa é a afirmação da identidade científica nacional. Houve o intercâmbio de conhecimento entre as diferentes instituições, somado a isso os resultados obtidos inéditos que abrem novas perspectivas não só para o campo da paleontologia, mas também para o campo da arqueologia”, afirma Fábio Faria.
“A união de instituições e pesquisadores de alto nível foi que possibilitou esses resultados. E é importante destacar a própria existência do Muphi como um esforço muito grande das sucessivas gestões municipais. Eu fui o idealizador do museu, mas sem contar com os gestores, não teria sido possível fazer o que fazemos, que é manter as coleções, manter funcionários e manter essas parcerias. São raríssimos os municípios brasileiros que mantêm museus dessa natureza e sem ele realmente seria pouco provável que a gente pudesse estar fazendo ciência em nível municipal, como a gente faz aqui, ou tenta fazer pelo menos. É um grande prazer trabalhar com essa turma motivada, empolgada, fanática pela ciência e pela paleontologia”, aponta Celso Ximenes.
“Essa parceria veio no sentido de mostrar também a importância da fauna do estado de MS, ela é bastante representativa e por isso nós, dentro da nossa Instituição, tínhamos condições de colaborar com esse trabalho. Eu acredito que a pesquisa tende a se aprofundar, principalmente pela grande diversidade de material da megafauna aqui. É uma megafauna também muito expressiva com a presença de fósseis de tatus gigantes, servos e mastodontes. Nós ainda temos também a megafauna que é vivente, que pode ser representada principalmente pelas antas, tão comuns na nossa região. Importante destacar também os avanços científicos resultantes dessa pesquisa, principalmente no entendimento do Quaternário, e a possibilidade de desenvolver o conhecimento em várias outras áreas. Agradeço muito a parceria que tem sido feita”, finaliza Edna Facincani.
Texto: Ariane Comineti
Fotos: Arquivos dos pesquisadores e paleoarte de Samuel Vilasboas Pereira