Estudo avalia crescimento físico e condições de saúde e nutrição de crianças Terena na área urbana de Campo Grande

Às margens das estatísticas de condições adequadas de saúde, com registros de déficits nutricionais, os povos indígenas clamam por um olhar mais minucioso aos problemas que enfrentam. Os raros estudos sobre a temática, em especial sobre a saúde materno-infantil desses povos, impulsionaram a pesquisa “Crescimento físico e condições de saúde e nutrição de crianças indígenas Terena: um estudo de coorte”.

O estudo, base do Doutorado da professora Deise Bresan (Facfan), quer avaliar o crescimento físico e condições de saúde e nutrição dessas crianças Terena, do nascimento aos 12 meses de idade, residentes em comunidades urbanas em Campo Grande. Para isso, participam da pesquisa os pequenos nascidos no período de 1 de junho de 2017 a 31 de julho deste ano, em quatro comunidades urbanas Terena:  Marçal de Souza, Água Bonita, Tarsila do Amaral e Darcy Ribeiro.

Aldeia urbana Darcy Ribeiro

“A pesquisa contempla ainda investigar a associação com variáveis sociodemográficas, econômicas, de saúde e nutrição; caracterizar a prática de aleitamento materno e alimentação complementar de crianças Terena até um ano de idade e verificar a prevalência de anemia nas mães e crianças Terena no sexto e no décimo segundo mês de vida e identificar seus condicionantes”, explica a professora Deise, que iniciou o trabalho com indígenas em 2010, mas com índios Kaingang, no Paraná e em Santa Catarina.

“Campo Grande tem uma peculiaridade. Há muitos indígenas na área urbana, por isso resolvi fazer a pesquisa aqui. Eles precisam de visibilidade, é uma população marginalizada e essa situação crítica que vivem é algo que me toca bastante”, completa a pesquisadora.

De acordo com último Censo Demográfico 2010 (IBGE), Campo Grande é uma das dez cidades brasileiras com maior aglomeração de indígenas na área urbana (5.657 pessoas), sendo a grande maioria Terena, quinta etnia mais numerosa no Brasil, presente principalmente em Mato Grosso do Sul.

Dados

A primeira fase da pesquisa aconteceu com as mães ainda gestantes, em entrevistas com aplicação de questionário sociodemográfico para verificação das condições de domicílio, informação sobre origem dos alimentos consumidos pela família (compra, plantio ou doação), escolaridade da mãe, renda da família e tipo de trabalho realizado (trabalho remunerado, fixo, temporário, aposentadoria, benefício social).

Já a visita de um mês de vida do bebê englobou informações sobre tipo de parto, sexo e peso, comprimento e perímetro cefálico ao nascer, além do aleitamento materno. Com relação às mães foram verificadas informações sobre consultas de pré-natal, Índice de Massa Corporal (IMC) pré-gestacional, ganho de peso ponderal, se receberam prescrição de sulfato ferroso e ácido fólico, entre outros.

Bebê Terena acompanhado pela pesquisa

A terceira visita é feita aos seis meses dos bebês, quando foram verificadas novamente as informações de tamanho e crescimento, vacinas, registros de visitas às unidades de saúde.

Aos seis, assim como aos doze meses, mães e bebês realizam na visita exame de hemoglobina, com coleta de sangue capilar e dosagem sanguínea para verificação de anemia, além da antropometria de mãe e filho.

“Aos doze meses queremos saber sobre a alimentação da criança, se a mãe ainda amamenta, se começou a introduzir alimentos, quais alimentos, como essas crianças crescem no primeiro ano de vida”, aponta Deise.

A pesquisadora acompanha 48 mães e filhos. Os levantamentos parciais mostraram que as consultas de pré-natal foram realizadas pelas Terena em quantidade bem inferior ao recomendado pelo Ministério da Saúde (pelo menos seis).

O número de mães obesas beirou 34%. “Pensando em uma população muito jovem, com média de idade de 23 anos, é uma frequência alta. Campo Grande, em geral, registra frequência de 19% de obesas, mas entre mulheres com 18 anos ou mais de idade”, diz a professora.

Outro número que chamou atenção foi o percentual de 40% de partos por cesariana. “Segue um pouco a ‘epidemia’ do Brasil, com número bem expressivo”.

A introdução de alimentos complementares é bem precoce, acontecendo na maior parte dos casos entre quatro a cinco meses, sendo difícil encontrar alguma mãe que só ofereceu alimentos a partir do sexto mês, como preconizado. “Há muita inserção de suco industrializado, como os de pacotinho, de iogurtes petit suisse, açúcar (muitas vezes introduzido no leite), ou seja, vários ultraprocessados”, completa.

A princípio não foram identificados casos graves de desnutrição, ao contrário, ao nascimento as crianças apresentam peso e comprimento dentro do esperado.

Com base em dados parciais se observou que conforme aumentou o índice de massa corporal materno antes da gestação, houve aumento do peso de nascimento da criança. Segundo a pesquisadora o excesso de peso pré-gestacional materno pode levar a intercorrências clínicas na gestação, além de complicações no parto e puerpério.

“O aumento do excesso de peso é algo que observamos no Brasil há algumas décadas e que está relacionado com mudanças no consumo alimentar, prática de atividade física, além de fatores ambientais, sociais e até genéticos. Entre os povos indígenas, é difícil estabelecer tendências em saúde, pelo quantitativo de estudos disponíveis, mas o que observamos é que entre algumas etnias a frequência de excesso de peso, por exemplo, é maior do que para população não indígena”.

Dificuldades

Memorial da Cultura Indígena Marçal de Souza

Em um país com 305 etnias indígenas conhecidas, com mais de 270 línguas diferentes, a trajetória histórica, política e econômica é muito distinta entre as etnias. Os Terena iniciaram a vinda para a área urbana de Campo Grande, na década de 1910 e por volta dos anos 90 houve a criação dos primeiros aglomerados. “Eles vieram em busca de melhores condições de vida, no entanto, ainda enfrentam muitas dificuldades”, enfatiza. “Em alguns locais, como é o caso da Água Bonita, parte dos domicílios estão em uma área que não tem condições sanitárias adequadas, como por exemplo, a falta de destino correto para o esgoto”, aponta a professora Deise.

Os povos indígenas, assegura a professora, ainda sofrem com preconceito. “Eles vivem marginalizados e são discriminados. Muitas mães reclamam do atendimento que recebem tanto em locais públicos como privados”.

Diante disso, a professora procura despertar nos alunos a reflexão sobre essa realidade, a qual nunca se depararam. “A desigualdade social existe, e se não tivermos políticas públicas que visem o combate da mesma, infelizmente muitas dessas crianças irão perpetuar a situação que os pais vivem hoje. E nós sabemos que as condições socioeconômicas refletem diretamente nos desfechos em saúde. Por isso precisamos dar visibilidade à essa população”.

Um fato preocupante é que cerca de 47% das mães e 50% das crianças no sexto mês de vida, apresentam anemia – segundo dados disponíveis até o momento –,   o que pode ser por questões alimentares ou até mesmo por outros problemas, como parasitoses.

Muitas mães não tomaram o sulfato ferroso na gestação, também indicado no puerpério. A partir dos seis meses as crianças também devem ser suplementadas, mas de acordo com a pesquisadora, muitas não recebem o suplemento.

Ao encontrar essa realidade de alto índice de anemia, a pesquisadora faz orientação nutricional específica. A deficiência de glóbulos vermelhos pode levar ao déficit cognitivo, influenciando no crescimento. “Vejo uma falha do sistema de saúde porque essas crianças deveriam estar suplementadas. Com essa situação, teremos crianças mais apáticas, inapetentes, que podem ter déficits nutricionais e ficar mais suscetíveis a doenças” expõe.

Estudo nacional que avaliou várias etnias apontou déficit de estatura muito elevado entre as crianças indígenas. “Se olharmos a estatura dos brasileiros de maneira geral, vemos que estamos crescendo, porque as condições de vida melhoraram em comparação com décadas atrás. As curvas de crescimento infantil que utilizamos hoje são apropriadas para crianças indígenas também – porque todas as crianças no início da sua vida, se tiverem condições adequadas de alimentação, de ambiente, nutricionais, crescem da mesma forma, mas isso não vem acontecendo. Entre crianças indígenas de zero a cinco anos, o déficit de estatura por idade acontece em 25,7% dos casos, e em regiões como o Norte, o déficit chega a 40% – indicativo de que as condições de vida não são adequadas”, completa.

A professora pretende dar continuidade ao acompanhamento dessas crianças aos cinco anos, para saber como prosseguiu o desenvolvimento desses pequenos.

Os resultados de toda essa avaliação serão apresentados posteriormente à Secretaria Municipal de Saúde. “Talvez a Sesau ainda não conheça esses dados. Trabalhamos hoje em cima de um diagnóstico da população – não há como fazer um programa sem conhecer essa realidade – esses dados podem ajudar a saúde local a trabalhar com as comunidades indígenas em Campo Grande. Que esses dados possam servir de alguma forma para melhorar a situação dessa população”.

A pesquisa é financiada pela Fundect, a partir de um edital do SUS. “Em geral, os resultados indicam uma assistência precária à saúde, mesmo entre uma população reconhecidamente vulnerável e que reside em área urbana, sustentando o cenário de desigualdade em saúde enfrentado pelos povos indígenas no Brasil”.

Texto:Paula Pimenta

Fotos: Deise Bresan