Há seis anos à frente da chefia de Pesquisa e Desenvolvimento da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Unidade Embrapa Gado de Corte, a pesquisadora Lucimara Chiari aborda nesta entrevista o desenvolvimento do setor pelas mãos da pesquisa, a parceria de quase duas décadas da Unidade com a UFMS, os desafios para os próximos anos para os pesquisadores da área e para a própria Unidade que neste momento trabalha com o Plano de Demissão Incentivada (PDI), o que acarretará em diminuição de até 30% no quadro pessoal em alguns de seus setores. Com Doutorado em Genética e Melhoramento pela Universidade Federal de Viçosa (MG), Lucimara ingressou na Embrapa Gado de Corte como pesquisadora concursada em 2006 e de 2011 a 2019 foi presidente da Comissão Interna de Biossegurança CIBio da Gado de Corte. Atualmente é colaboradora e coorientadora do curso de Mestrado em Biologia Vegetal da UFMS, entre outras instituições. Localizada em Campo Grande, a Embrapa Gado de Corte foi inaugurada em 28 de abril de 1977 e conta hoje com 49 pesquisadores e 23 projetos de pesquisa em andamento, desenvolvidos na Fazenda Sede e na Fazenda Modelo, em 4,6 mil hectares, com cerca de quatro mil animais, entre bovinos, equinos e ovinos.
Como a Embrapa tem planejado e executado as suas pesquisas nos últimos anos?
L: Nos últimos anos temos ampliado as ações em parceria com o setor privado para ter uma menor dependência financeira do Tesouro Nacional e para melhor promover a adoção das tecnologias geradas. Essas parcerias são boas porque fazem com que a nossa tecnologia, resultado da pesquisa, vire realmente inovação, porque esse parceiro privado já a coloca no mercado. Esse parceiro é, em geral, uma empresa que comercializa ou desenvolve tecnologias para as diversas áreas da produção pecuária (saúde, genética, nutrição, etc). É nesse caminho que pretendemos seguir.
Quais as dificuldades de se tocar a pesquisa hoje?
L: Acredito que seja mais a questão de recursos limitados para a pesquisa, mas diante dessa realidade temos que nos adaptar, pois essa redução é tendência mundial, segundo a FAO. É como em casa, em momentos de crise financeira temos que buscar formas de economizar e buscar outras fontes de recursos. As parcerias podem ser essa fonte, tanto com o setor privado como já dito, mas também com o público, buscando unir forças. Temos, por exemplo, uma parceria forte com a UFMS, principalmente na área de desenvolvimento de softwares para a pecuária de corte, mais especificamente com a Faculdade de Computação (Facom), que tem no mínimo 15 anos. Essa parceria otimiza recursos técnicos, humanos e financeiros dessas instituições e quando chegamos ao desenvolvimento de um produto podemos buscar um parceiro privado que possa participar da validação e finalização desse produto, posicionando-o no mercado. Posso citar um caso de sucesso nesse modelo de desenvolvimento e parceria, o da balança BalPass, desenvolvida em parceria com a UFMS e a Coimma. O parceiro privado é o grande responsável por esse produto chegar onde deve chegar. Mais um exemplo de sucesso é o aplicativo Pasto Certo, também desenvolvido em parceria com a UFMS, que conta como parceiro privado a Unipasto (Associação para o Fomento à Pesquisa de Melhoramento de Forrageiras) que promove a manutenção e atualização do app. Esse é um caminho virtuoso que realmente pretendemos seguir fazendo.
Quais são as áreas de pesquisa na Embrapa Gado de Corte?
L: Temos três grupos de pesquisa: o grupo de pesquisa vegetal atua em pastagem e forragicultura, está focado no desenvolvimento de cultivares de forrageiras e no manejo de pastagens, que é fundamental para assegurar ao produtor aproveitamento adequado da forragem, persistência da pastagem, produtividade animal, e consequente sustentabilidade da produção agropecuária. Entre suas principais atividades também estão à manutenção de bancos de germoplasmas das forrageiras tropicais (braquiárias, panicuns e estilosantes), biotecnologia, entomologia, fitopatologia, solos e outras linhas de pesquisa essenciais para o melhoramento de cultivares. O grupo de pesquisa animal atua em produção e sanidade animal, incluindo as áreas de melhoramento genético de bovinos de corte, qualidade da carne, estratégias de produção de novilhos precoces, desenvolvimento de vacinas e kits diagnósticos para diversas doenças que impactam a produção pecuária (ex. brucelose e tuberculose), controle da mosca dos estábulos, desenvolvimento de vacina e controle do carrapato do boi, etc. Por fim, o terceiro grupo de pesquisa é o de sistemas de produção que atua principalmente no tema sistemas integrados lavoura-pecuária-floresta (ILPF) em suas diferentes conformações, responsável pelo desenvolvimento da marca-conceito Carne Carbono Neutro (CCN), que é um protocolo para certificação de carne bovina produzida em sistemas integrados com o componente florestal, principal responsável pelo sequestro de carbono.
Como está hoje a parceria com a UFMS?
L: Atualmente, temos projetos que envolvem a participação de pesquisadores da UFMS nos três grupos de pesquisa. Temos também dois contratos de parceria vigentes, um para receber estudantes da UFMS como estagiários ou bolsistas na Embrapa, e outro para que pesquisadores da Embrapa possam atuar como professores em programas de pós-graduação na UFMS. Com relação aos projetos em parceria com a UFMS, a maior parte deles faz parte do mestrado profissional em computação aplicada da Facom, onde os estudantes são orientados por um professor da Facom e co-orientados por um pesquisador da Embrapa Gado de Corte visando a solução de problemas computacionais relacionados à pecuária de precisão.
No geral, as pesquisas na Embrapa surgem a partir de demandas dos produtores?
L: Sim. Temos vários caminhos para isso. A Secretaria de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa por meio de seus portfólios de pesquisa levantou uma lista com 389 desafios de inovação, pautados em problemas/oportunidades dos diversos setores do agro. Esses desafios de inovação foram submetidos à avaliação pelos principais stakeholders desses setores. Outro importante caminho é através do nosso Centro de Inteligência da Carne (Cicarne), cujo pesquisador responsável também é professor da UMFS, Guilherme Malafaia. Recentemente o Cicarne realizou um levantamento das demandas de toda a cadeia da carne bovina, indo além das demandas do produtor, mas também ouviu consumidores e indústria, enfim, os vários elos dessa cadeia produtiva. Outra forma direta de levantar demandas é o que chega através de parceiros privados que nos procuram buscando parceria para desenvolvimento de uma tecnologia, processo ou serviço para atender um problema específico. Neste caso, se for da nossa expertise, podemos fazer um contrato de parceria e seguir com o desenvolvimento conjunto.
A agricultura foi revolucionada com a pesquisa. O mesmo aconteceu na pecuária?
L: Sem dúvida a pesquisa teve grande importância no desenvolvimento da pecuária brasileira. A grande revolução da pecuária foi à chegada das braquiárias, na década de 70, que fez com que a pecuária pudesse ocupar a região dos cerrados e, com o desenvolvimento de cultivares cada vez mais produtivas e adaptadas, hoje se espalha por todo o Brasil tropical. O melhoramento genético bovino também tem de ser considerado como revolução da pecuária, porque quando chegou ao Brasil, o Nelore era muito diferente do que temos atualmente. Houve muito trabalho de melhoramento feito aí. Raças puras adaptadas, ou cruzadas, melhoradas, promoveram aumento da produtividade e da qualidade da carne brasileira. Vale destacar no melhoramento animal o uso de raças taurinas, vemos muitos bois pretos pelos pastos, mas ainda o carro chefe – 80% da produção de gado no Brasil – ainda é o Nelore. Também destaco pesquisas nas áreas de reprodução, nutrição e na sanidade animal, feitas pela Embrapa e seus parceiros que sem dúvida revolucionaram a produção de carne bovina no Brasil. A vantagem de ser um País tropical é que temos a incidência de luz o ano inteiro, o que é bom para produção de forragem para a criação do gado no pasto, o que reduz custo de produção, reduz a emissão de gases de efeito estufa, sendo mais sustentável. Por outro lado, temos muitos desafios relacionados ao grande número de pragas e doenças que acometem os animais e também as pastagens, os veranicos que reduzem a produção forrageira e entre outros desafios que ainda são objetos de pesquisa contínua. Outro grande desafio é melhorar a produtividade animal, melhorar nossos índices zootécnicos, ter mais produção de carne por animal. Quando falamos que o Brasil possui o maior rebanho comercial de bovinos do mundo, isso é uma vantagem, obviamente, mas seria muito melhor se conseguíssemos manter o número de animais e mesmo assim aumentar a produção de carne, arrobas por animal.
Quais são as principais demandas hoje quando se fala em pecuária de precisão?
L: A redução de mão de obra no campo e a necessidade de tomar decisões rápidas são sem dúvida desafios para a geração de tecnologias digitais, para automação e para tomada de decisão. A pecuária de precisão evoluiu tanto que hoje já falamos em pecuária 4.0.
E o que é a pecuária 4.0?
L: É uma evolução da pecuária de precisão, pois vai além de gerar produtos digitais focados na solução de problemas pontuais, mas sim focando em negócios digitais. Na pecuária 4.0 temos que simplificar as coisas, abstrair a complexidade para o produtor, integrando as tecnologias e entregando serviços, não produtos. Podemos gerar várias soluções tecnológicas digitais, mas muitas vezes o produtor nem sabe como e o que usar. Entregar várias soluções conjuntas e integradas de uma forma mais mastigada, direta, é o nosso novo foco.
O sistema de integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF) já está em uso há mais de duas décadas no Brasil. Houve evoluções nos últimos anos, o sistema tem gerado ganhos?
L: Nessa unidade temos uma área com mais de 25 anos de estudo em sistemas integrados. Teve início em 1993 com sistemas ILP (integração lavoura-pecuária) e em 2009 passou a incluir também o componente florestal nas avaliações. Apesar desses primeiros estudos já demonstrarem as vantagens dos sistemas integrados, a adoção ainda era pequena até início da década de 2010. Logo, a principal evolução da pesquisa desses sistemas no Brasil foi na área de transferência de tecnologia. A parceria da Embrapa com a Rede ILPF alavancou a adoção dos sistemas ILPF e a área chegou a mais de 11 milhões de hectares, em 2016. Os principais benefícios da implantação dos sistemas integrados são a melhoria na qualidade do solo, no bem-estar animal, no sequestro de carbono, e na renda do produtor pela diversificação das atividades e redução dos riscos de mercado. Mas ainda há muitos estudos que precisam ser feitos nesses sistemas, como questões relacionadas a pragas e doenças, o ciclo da água, ciclo do carbono, tudo isso precisa ser melhor compreendido. A distribuição das arvores é algo que ainda está sendo estudado para se tirar maior vantagem do sistema, porque muita sombra é ruim para a produção do capim. As Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) são super aplicáveis em sistemas integrados, e temos trabalhado muito nisso em parceria com a UFMS.
A bioinformática e a biotecnologia ajudam?
L: Trabalhamos a biotecnologia e a bioinformática como ferramenta de suporte ao melhoramento convencional, tanto de forrageiras quanto de bovinos. O uso vai além de marcadores moleculares para seleção, hoje trabalhamos com seleção genômica que está mais avançada no melhoramento de bovinos de corte, tanto na raça nelore quanto senepol, com importantes resultados. Sou líder de um projeto, em parceria com a UFMS, para desenvolver ferramentas para dar esse suporte aos programas de melhoramento genético de forrageiras. É um projeto que busca identificar genes relacionados com estresses abióticos, por exemplo, tolerância à seca, ao alumínio, trabalhamos nos projetos com gramíneas forrageiras desenvolvidas aqui – braquiária e panicum. Importante dizer que não temos nenhuma forrageira transgênica, pois quando se fala em biotecnologia muita gente só associa com transgenia. Essas técnicas também estão sendo muito utilizadas na área da sanidade animal, desenvolvimento de vacinas e kits diagnósticos. Estamos em namoro com o curso de Pós-graduação em Biotecnologia da UFMS, visando uma parceria em biotecnologia com diversas áreas, vegetal e animal, tanto no melhoramento como na saúde.
A marca-conceito Carne Carbono Neutro, desenvolvida pela Embrapa Gado de Corte, surgiu a partir desses sistemas integrados. Como funciona?
L: A Embrapa Gado de Corte desenvolveu essa marca-conceito CCN com o objetivo de certificar, agregar valor, a carne bovina que é produzida em sistemas de integração pecuária-floresta ou lavoura-pecuária-floresta e que apresenta suas emissões de gases de efeito estufa neutralizados durante o processo de produção. Temos todos os preceitos do sistema, depositamos o protocolo na Confederação Nacional de Agricultura (CNA), e a marca foi homologada para certificação. Fizemos no final do ano passado um curso para certificadoras, que a partir disso irão fazer a certificação nas fazendas. O produtor irá ganhar a mais pela carne quando se encaixar no conceito do CCN. A parceria com o frigorífico é que vai determinar esse bônus que o produtor vai ganhar. O animal emite metano, principalmente através do arroto. O metano é mais potente do que o CO2. A forrageira fixa o carbono, mas a árvore fixa muito mais. Fizemos o cálculo do balanço do carbono, o quanto os animais emitem e a árvore absorve, para fazer esse protocolo e verificar a neutralização das emissões. Na verdade, muitas vezes se consegue carbono positivo, ou seja, mais carbono sequestrado do que emitido, então o sistema está sendo positivo.
Quando se pensa na pesquisa futura, o que se visualiza?
L: A Embrapa tem um grande projeto, do qual faço parte, com edição gênica. Quando falamos em pesquisa na fronteira do conhecimento, principalmente em biotecnologia, a edição gênica é uma das ferramentas mais avançadas, aí falamos em CRISPR e esse projeto é com as grandes culturas, soja, cana. As TICs também são muito importantes para a pesquisa futura, principalmente integrada no conceito 4.0. Além dessas, para o futuro também temos que pensar de forma mais integrada em pesquisa. É interessante essa visão: no início, havia o Sistema Nacional de Pesquisa – em que a Embrapa, as universidades, os parceiros privados, funcionavam de uma forma concatenada, articulada, e isso levou o Brasil para onde está hoje. Mas em algum momento, isso se perdeu um pouco. A Embrapa deixou de ter uma relação tão forte com as universidades e com os parceiros privados, então estamos tentando resgatar essas parcerias. Com as universidades, buscamos trabalhar principalmente na pesquisa mais básica, e com o setor privado trabalhar mais em desenvolvimento e inovação. Resgatar essa boa articulação e buscar o desenvolvimento do Brasil. Até 2050, vamos chegar perto de 10 bilhões de habitantes no Planeta e fala-se em ampliar 50% a produção de alimentos. Temos que aumentar essa produção, mas sem usar mais áreas, porque precisamos preservar e com uma mão de obra mais escassa, por isso, a automação é tão importante. E sempre com foco também nos desafios de desenvolvimento sustentável. A pesquisa tem de ser o alicerce, mas não sozinha. Tudo o que o Brasil já cresceu é resultado de pesquisa, desenvolvimento de ponta e isso tem de se perpetuar. É preciso haver investimento, seja ele público ou privado, mas tem que se investir em pesquisa para continuar na posição de protagonismo. Tem que ter produtores que sejam empreendedores, como os que já abraçaram as novas tecnologias e as puseram no campo. Além de políticas públicas favoráveis, com vistas à produção sustentável. Terra nós temos, o desafio é não ampliar o que já é usado hoje, mas ao contrário, no caso da pecuária, é torna-la mais intensiva, mais produtiva.
Texto e fotos: Paula Pimenta