Em 340 mil hectares, com mais de 98% de cobertura florestal nativa ao redor, comunidades tradicionais ecoam na caça de subsistência relações sociais impactadas pela preservação da espécie.
Essas interações preservadas no meio da mata são parte da pesquisa “Socioecologia da caça de subsistência em populações tradicionais no sudoeste da Amazônia”, tese de doutorado defendida pelo pesquisador André Valle Nunes no Programa de Pós-graduação em Ecologia e Conservação (PPGEC-UFMS).
A pesquisa foi realizada na Reserva Extrativista Riozinho da Liberdade, no Acre, próximo ao Peru, com objetivo de avaliar o contexto social da caça de subsistência nas populações tradicionais ribeirinhas. “A atividade da caça não é somente para alimentação, aquisição de proteína. Também pode moldar as relações sociais entre as famílias da comunidade por meio da doação de carne. Para eles, a comunidade é o todo”, explica o pesquisador.
A doação de carne de caça, não só na Amazônia, mas na América do Sul e em outras regiões do mundo, é mais relatada para populações indígenas. “Estamos mostrando que ocorre em populações não indígenas também na Amazônia. Essa documentação sobre os ribeirinhos é muito importante”.
Caça na mata
Os ribeirinhos têm na caça de animais silvestres – legalmente autorizada – a principal fonte de proteína animal para consumo, além do pescado. Criações de galinhas e porcos são destinadas às datas especiais como aniversários, casamentos, torneios de futebol.
Em dias alternados ou quando necessário, os caçadores entram na mata em busca da carne a servir à mesa. Mas seriam os frutos da caça destinados apenas à família? Relações de parentesco seriam importante no compartilhamento da carne?
A resposta alcançada pelo pesquisador não está em nenhuma relação de parentesco, mas na biomassa da espécie caçada. “Se chegam com animais grandes, maiores, conseguem partilhar para mais pessoas da comunidade. Isso difere um pouco das populações caçadoras e coletoras da África, onde as comunidades têm tendência de doar para as pessoas mais próximas”, aponta André.
E doar também ajuda a questão de segurança alimentar. “Se há uma família que no dia o caçador não teve sucesso, que está sem proteína em casa, receber um pedaço de carne favorece sua segurança alimentar; então a rede de doações favorece a segurança de toda a comunidade”, completa.
Da mesma forma, esse compartilhamento pode diminuir a pressão de caça, visto que ao doar para várias famílias – e cada uma tem o seu caçador – são menos homens em ação na mata. Paca, cutia, veado, caititu (porquinho) e algumas espécies de macaco, como o prego, estão entre os animais de médio e grande porte mais abatidos.
Um calendário de caça foi produzido pelo pesquisador para a coleta de dados, onde os caçadores marcavam os animais caçados na mata ao longo do período de estudo. O pesquisador instalou ainda GPS nas espingardas dos caçadores para mapear as áreas de caça e analisou os atributos sociais, idade dos caçadores, tamanho das famílias, a renda com o roçado de mandioca para saber quais influenciariam na distância percorrida por eles na mata.
“Queria saber se quem produz mais, tem família grande, entre outras questões, percorria distâncias maiores”, diz. A prole maior faz sim os caçadores caminharem mais. Em análise da resposta de 13 caçadores, a média de andança foi de 819 hectares por dia.
Geralmente, saem a busca da carne em dias alternados, mas isso muda conforme a necessidade de comida, sendo certo a caça aos sábados, dia de descanso da roça e quando eles tiram para o lazer, ficando com o tempo livre. Saem então para a mata, sem ter a preocupação de voltar logo para dar conta das outras tarefas. E o domingo é sagrado, só para descanso.
“Caçadores com famílias maiores andam mais, assim como os caçadores que estão em comunidades menores, com menos vizinhos para compartilhamento de carne de caça”.
Os eficientes na caça, certamente, são os caçadores mais velhos e logo, mais experiente, entre 40 e 50 anos. Essa realidade é comum a caçadores de diferentes regiões de florestas tropicais. “Eles tendem a manter mais laços com a comunidade. Prezam esta questão social. Gostam de caçar, fazem com prazer”, afirma André.
O pesquisador presenciou oportunidades de caçadores avisarem à comunidade quando um bando, como de queixada, estava “passando por perto”, o que motivava a saída coletiva à caça. “No momento da caça não há preguiça, todos saem em busca do alimento”.
Espingardas de calibre 22, todas registradas, são usadas pelos caçadores que costumam fazer, eles próprios, as recargas dos cartuchos manualmente. Compram a espoleta e a pólvora, recarregam os cartuchos e usam cera de abelha para vedação.
Em uma terceira fase da pesquisa, André usou os dados de reservas extrativistas e terras indígenas e passou a olhar para as outras 30 áreas no Acre, Peru e Bolívia, onde vivem ribeirinhos e indígenas.
“A proposta foi tentar entender se a caça acabar, se houver um colapso, será que essas populações, que moram na Amazônia acreana (brasileira), peruana e boliviana, conseguiriam consumir proteína animal com o que ganham”, questionou o pesquisador.
Para essa análise, foram utilizados o salário da região, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Instituto Nacional de Estadística (INE), do Peru e da Bolívia, a renda anual com a produção de farinha e com a venda da produção de castanha-do-Pará.
Essas populações do sudoeste da Amazônia consomem, em média, 58 quilos de carne de caça por ano por pessoa, número bastante superior ao recomendado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO/ONU) de no máximo 500 gramas de carne vermelha por semana.
“Pensando que o quilo da carne na região é de US$ 5,50 dólares, uma família com seis pessoas gastaria no ano US$ 1806 dólares, o que corresponde a 82% do salário familiar, 194% da renda de farinha de mandioca ou 69% da exploração da castanha-do-Pará, ou seja, é inviável. Se acabar a carne de caça nessa região, acabará também a segurança alimentar dessas populações com relação ao consumo de proteínas de carne vermelha”, analisa.
O consumo de carne de caça nas 30 áreas somadas seria de US$ 7,8 milhões de dólares ao ano. “Isso é o que a floresta aporta sem cobrar. Há preocupação com a redução dos estoques de animais para caça, o que já é sentido pelos caçadores. Os mais velhos lembram da época da extração da borracha. Saiam barcos e mais barcos para exportação da pele (i.e onça-pintada, maracajá-açu) para os Estados Unidos. Houve grande matança de animais, e os ribeirinhos sequer davam conta de aproveitar toda a carne”.
História
Os ribeirinhos da Reserva Extrativista Riozinho da Liberdade são remanescentes e descendentes dos Soldados da Borracha, assim chamados os brasileiros que entre 1943 e 1945 foram levados para a Amazônia para extrair borracha destinada aos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial.
“As gerações seguintes e as pessoas que continuaram nesses locais de floresta tiveram de se moldar para sobreviver nessas regiões isoladas”, explica André.
Nas 26 comunidades pesquisadas, há cerca de 1300 pessoas, de todas as idades. As crianças estudam em escolas locais, contam com posto de saúde apenas para atendimento de casos de malária. Hoje possuem gerador, ligado seis horas por dia. Somente em 2016 chegaram os primeiros orelhões que funcionam com placa solar. Em casa de palafitas, cobertas por palha ou zinco, os ribeirinhos não sabem como é ter nas residências água encanada ou esgoto. Utilizam caixas d’água para coleta de água da chuva, mas no dia a dia é a água barrenta do rio que entra nas panelas.
Os que vivem nas regiões mais longínquas enfrentam seis horas de barco, ou mais tempo quando o rio está baixo, e mais uma hora e meia em pau de arara para chegar à cidade mais próxima, Cruzeiro do Sul.
Em uma região que aparentemente parou no tempo, os ribeirinhos transmitem felicidade e generosidade. “Alguns caçadores comentavam que iam para cidade, mas não aguentavam ficar lá, queriam logo voltar. Que nas comunidades não precisam ter dinheiro, podem comer a qualquer hora, que a floresta lhes dá”.
Uma grande experiência de vida, é assim que define André após as visitas realizadas quatros vezes por ano entre 2016 e 2017. “Coisas que não damos valor na cidade, passei a valorizar lá. Tinha necessidade de usar, mas tinha de me adequar a situação deles. Aprendemos a ser menos arrogantes e tentar ser de igual para igual”.
Paula Pimenta